Dispensacionalismo e Aliancismo: impactos hermenêuticos
Introdução
O presente texto visa uma compreensão dos dois modelos hermenêuticos, dispensacionalismo e aliancismo (mais conhecido como "teologia do pacto"), percebendo seus pressupostos e como estes influenciam a interpretação bíblica de cada grupo.
A diferença básica dos dois grupos implica na maneira como enxergam a relação entre Israel e Igreja, vendo-os como uma unidade ou como dois povos distintos dentro do plano redentor divino. Já houve discussões maiores quanto ao conceito salvífico, isto é, quanto às condições da salvação do homem ao longo da revelação bíblica. Hoje, o ponto de discussão se concentra, como já dito anteriormente, na relação Israel-Igreja, na aplicabilidade do Antigo Testamento à vida cristã e no modo de interpretação da profecia bíblica.
O Aliancismo ou Teologia do Pacto
O aliancismo é um sistema hermenêutico que olha para a revelação bíblica entendendo que Deus se relaciona pactualmente com Suas criaturas desde a eternidade. Há, basicamente, três pactos. O primeiro é o "Pacto de Redenção", onde o Pai, na eternidade, propôs ao Filho enviá-lo com o propósito de redimir a humanidade mediante a obra expiatória deste. Dentro deste pacto maior entre o Pai e o Filho se encontram o "Pacto das Obras" que Deus fizera com Adão antes da queda e o "Pacto da Graça" que se deu pós-queda. O Pacto das Obras dizia respeito às condições para que Adão pudesse viver eternamente na presença de Deus, o que dependia de comer ou não da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.17), ou seja, de obedecer ou não a Deus. Após a queda humana, Deus estabeleceu o Pacto da Graça, onde as condições para o homem ser salvo de sua separação de Deus se encontram na graça divina, com base na obra de Cristo e mediante a fé humana nesta obra do redentor. Isto implica em que para os aliancistas, desde a queda, a salvação do homem se dava por meio da fé na salvação daquele que viria da semente da mulher (Gn 3.15).
Sendo assim, o pacto entre Deus e Abraão (Gn 12, 15, 17 e 22) é a renovação do Pacto da Graça já feito com Adão (Gn 3.15) e encontra seu cumprimento em Jesus (Gl 3.29) com a Nova Aliança, anunciada por Jeremias (Jr 31.27ss; Hb 8). As promessas quanto à terra feitas a Abraão encontram sua realização nas bênçãos da Nova Aliança e no estado final dos crentes (Hb 3.18 – 4.16; 8; 11.10), não havendo uma diferença de pactos mas uma renovada continuidade e o cumprimento da Aliança de Graça. Portanto, não há motivo para diferenciar Israel e Igreja já que ambos são o povo escolhido de Deus que desfrutam da mesma salvação graciosa dada por Cristo e em quem não há mais divisão, mas apenas um só povo (Ef 2.11ss).
Esta visão unificada, então, dá ensejo para o entendimento espiritual das profecias referente à nação de Israel quanto à terra e ao reinado messiânico davídico que encontram seu cumprimento sobre a igreja e em Cristo, que reina assentado à direita de Deus (At 2.25-36; Ef 1.20-23).
A lei mosaica é enxergada como uma administração temporária dentro do Pacto da Graça e que tinha por propósito tipificar o cumprimento maior na Nova Aliança. Israel não continuara em sua terra por não cumprir os termos da Antiga Aliança ou Lei Mosaica que por sua vez era uma republicação do Pacto das Obras, não tendo mais o poder de conceder vida eterna, mas sim, de delimitar as condições de vida ou morte dentro da terra prometida.
Isto posto, a Antiga Aliança não tem valor algum diante da Nova Aliança e todos os aspectos cerimoniais e civis perdem seu valor como norma de vida. Apenas os aspectos morais é que permanecem para os crentes que estão sob a Nova Aliança, pois, tais aspectos não estavam presos à Antiga Aliança, e sim, ao caráter de Deus.
De modo prático, toda a referência a Israel no Antigo Testamento será diretamente aplicado à Igreja, tanto no que diz respeito às qualidades quanto ao cumprimento profético. Por exemplo, uma das revistas de escola dominical da SOCEP, de cunho aliancista, dedica-se a abordar o tema "Igrejas do Novo Testamento" e no primeiro capítulo ao tratar sobre analogias referente à Igreja, diz que nós somos o rebanho de Deus, apoiando-se em Salmos 100.3. O mesmo pode ser dito quanto a visão de um dos ex-professores do presente escritor que afirmara que Isaías 11.6, ao falar do lobo convivendo com o cordeiro, se cumpre na igreja onde pessoas que antes viviam como inimigas, ao se converterem, passam a conviver em paz.
A maneira como enxergam a continuidade da observância do aspecto moral contido no Pentateuco é exemplificada pela própria Confissão de Westminster, que vê o domingo como sábado cristão a ser obrigatoriamente observado pela Igreja, que anteriormente era o último dia da semana e, agora (isto é, a partir da ressurreição de Cristo), tornou-se o domingo.
O Dispensacionalismo
A hermenêutica dispensacionalista entende que dentro da revelação bíblica há várias épocas, cada uma marcada pela maneira distinta de Deus tratar com o homem, não quanto à salvação (pois esta sempre se dá por causa da graça de Deus, com base na obra de Cristo e por meio da fé), mas quanto à regra de vida. Cada uma dessas diversas formas de Deus se relacionar com o homem é chamada dispensação. Geralmente, a dispensação é marcada por um progresso na revelação de Deus ao homem (uma ampliação do que já fora revelado), pela exigência divina a ser administrada pelo homem, o fracasso humano em cumprir tal administração e o juízo de Deus como conseqüência deste fracasso. A atenção, então, se encontra na incapacidade humana de cumprir os requisitos divinos e sua total dependência da graça de Deus. O número de dispensações não encontra concordância dentro do próprio sistema. Devido ao trato diferente Deus-homem em cada época, se crê que o conteúdo da fé é distinto, também, como no caso de Abraão que não foi justificado por crer na obra redentora de Cristo, mas por crer em Deus, ou seja na graciosa promessa que Este havia feito a ele com respeito ao filho que lhe daria (Rm 4.1-22). Não que a base da salvação não fosse Cristo (Rm 3.23-26), mas o conteúdo era diferente da presente dispensação da Igreja (Rm 4.23-25; 3.21-23). Sempre o conteúdo estará relacionado à graça de Deus e à necessidade da fé humana nesta graça. Mas não é, necessariamente, especifico quanto à obra redentora do Salvador que, sem dúvida, é a base.
Tendo isso em mente, fica clara a distinção da maneira de Deus lidar com a humanidade quanto ao modo de vida, como, também, ao conteúdo de salvação. E assim, as promessas de Deus são respeitadas quanto à sua distinção, como também, a diferença no plano de Deus com Israel e com a Igreja (Rm 11.11-32; Gl 6.14-16). A promessa que Deus fizera a Abraão e à sua descendência (Gn 12, 15, 17, 22) e renovara na Nova Aliança (Jr 31.27ss; Ez 36) com respeito à terra prometida, há de ser cumprida literalmente com Israel. As promessas feitas a Davi e, conseqüentemente, a Israel, também terão seu cumprimento literal (2 Sm 7; Dn 7; Mt 24.29-31; Lc 1.30-33; Ap 19 – 20.9). A renovação espiritual prometida pelos profetas sobre Israel (Is 1.24-27; 44.1-5; Jr 31.27ss; Ez 36 – 37; Rm 11.11-32) se realizará com este povo.
Por mais que houvesse confusão no dispensacionalismo clássico, é admitido no dispensacionalismo desenvolvido, conhecido como progressivo, que a igreja desfruta de bênçãos da Nova Aliança (At 2.14-36). E, além disso, a igreja já não é mais vista como um parêntese no plano de Deus para Israel, mas a continuidade da promessa de por meio de Abraão abençoar todas as famílias da terra (Gn 12.3; Gl 3.6-29). Embora a Igreja não seja Israel, o verdadeiro Israel está contido na igreja nesta presente era (Rm 11.1-7; Ef 2.11-18).
Assim como houve um tratamento peculiar com Israel, o mesmo se dá com a Igreja. Esta já não está mais sob a Lei e por isso, não está obrigada a cumprí-la (Rm 6.14, 15; 2 Co 3.1-11). Nem por isso, o Antigo Testamento perde seu valor, mas continua a trazer princípios acerca de Deus e de Sua vontade para a prática da Igreja (Rm 15.3-5; 1 Co 10.1-13; 2 Tm 3.16, 17).
Demonstrando de modo prático e usando os próprios exemplos dados acima acerca do lidar hermenêutico aliancista, um dispensacionalista jamais usaria Salmo 100.3 para aplicá-lo à Igreja, pois, ali se refere especificamente a Israel. Certamente, mostraria que em João 10 a Igreja é comparada a um rebanho do qual Cristo é o Pastor, especialmente pelo verso 16 que indica a inclusão de gentios neste rebanho (cf. Jo 12.20-23, 31-33).
Ainda nos exemplos, Isaías 11.6 seria visto como uma profecia por se cumprir, contemporânea a uma restauração de Israel à sua terra (11.11-12), uma renovação espiritual do mesmo (11.13) e supremacia sobre as outras nações (11.14-16). O quarto mandamento já não é visto como obrigatório, pois, não existe uma ratificação no Novo, ao contrário, a guarda ou não do sábado é algo indiferente (Rm 14.1-6; Cl 2.16-17).
Conclusão
Tendo em vista os apontamentos acima, a proposta deste texto se cumpre ao mostrar as diferenças básicas do modo único e contínuo aliancista de enxergar o plano de Deus em sua relação com o homem e a maneira contínua, mas distinta, deste processo, apresentada pelo dispensacionalismo. Tais visões influenciam radicalmente a interpretação quanto à relação Israel-Igreja, ao cumprimento profético e à aplicabilidade da lei à vida da Igreja, como fora demonstrado e aplicado.
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