sábado, 19 de janeiro de 2008

NOSSA HERANÇA REFORMADA
Resgatando Verdades na História

INTRODUÇÃO
Em 31 de Outubro, de 2007, a reforma protestante comemorou seus 490 anos, desde que um doutor, professor e pregador decidiu afixar suas 95 teses na igreja do castelo de Wittenberg. O nome dele? Martinho Lutero. A revolução apenas iniciada por essas teses, foi originada numa situação de degradação do maior poder religioso de sua época, a Igreja Católica Romana. Vários fatores contribuíram para o desencadeamento da reforma que Lutero propôs.
Primeiro, é importante lembrar que a reforma não nasceu com Lutero, na verdade, outros homens como John Wycliffe, John Hus, os valdenses, entre tantos, expressaram sua indignação diante da falência espiritual na vida religiosa de sua época. Uma quebra com o sistema segundo o qual funcionava a Igreja e um retorno à estima e consideração pela Bíblia como Palavra de Deus marcaram estes movimentos.

Aliás, a Bíblia foi um elemento determinante para o começo da reforma, desde que Lutero ousou questionar certas estruturas enquanto estudava as cartas do apóstolo Paulo, encontradas na Bíblia. Daí conceitos como Sola Scriptura, reconhecendo a Bíblia como autoridade máxima na vida da igreja e não o papa, nem a tradição. Dentro disso, também, vieram conceitos como sola gratia, sola fide e Solus Christus, quando, estudando a carta aos Romanos, Lutero descobriu a verdade de que “o justo viverá pela fé” (Rm 1.17), a qual é depositada na graça de Deus oferecida com base na obra de Jesus Cristo. Sendo assim, as famosas indulgências vendidas pela igreja de Roma, que prometiam a salvação eterna, eram uma contradição do evangelho encontrado nas Escrituras.

O ambiente da vida religiosa era terrível, as guerras promovidas pelos papas, excomungando reis que não quisessem se submeter a eles, filhos de nobres recebendo cargos na igreja, simplesmente pela riqueza e prestígio da família, e o comércio das prostitutas nas igrejas e em locais de peregrinação em Roma. Tudo isso deixava claro que a igreja nada mais era do que um comércio e uma fachada sacra que escondia a luta pelo poder, prestígio e riqueza de homens contaminados pela perversidade.

Ao observar este contexto, não posso evitar compará-lo com a situação religiosa evangélica de hoje e buscar resgatar princípios legados pelos reformadores. Cabe aqui lembrar que, assim como a reforma não começou com Lutero, também, não terminou com ele, pois, homens como João Calvino, Ulrich Zwinglio, John Knox, entre outros, deram continuidade importante e definiram melhor certas questões. Portanto, quando falo de princípios legados pelos reformadores, não me limito a Lutero, mas, o incluo como parte do todo.

Diante dessa introdução, passo a destacar duas verdades legadas pela reforma, fundamentadas no Sola Scriptura, que são, por demais, pertinentes para os nossos dias.

1. TEOLOGIA DA CRUZ
Por que a primeira verdade que desejo destacar é esta? Simplesmente, porque passamos por uma verdadeira crise, a igreja evangélica de hoje tem perdido esta perspectiva que Lutero tanto enfatizou sobre uma teologia centrada na cruz, onde o homem conhece a Deus por meio do escândalo da cruz e não por seus próprios méritos (1 Co 1.18-25). Enquanto tal teologia buscava conhecer a Deus desta forma, o outro modo, pelo qual os teólogos da época buscavam conhecer a Deus, foi denominado por ele como teologia da glória, na qual a razão tinha a primazia e se buscava chegar até Deus por meio dela.

Esse movimento ficou conhecido na história como escolasticismo, período em que a filosofia de Aristóteles dominou a teologia, e se exigia que aqueles que pretendessem trabalhar neste campo, obtivessem um adequado conhecimento da filosofia aristotélica. O que acontecia era que a revelação de Deus, encontrada na Bíblia, ficava de lado e não recebia a importância que merecia. Diante disso, o homem buscava fazer seus próprios caminhos para alcançar Deus, no lugar de aceitar a revelação suprema em Jesus e Sua obra. Assim, o homem criou um Deus à sua imagem.
Lutero passou a denominar como teologia da glória qualquer teologia contrária àquela proclamada no evangelho. O papismo e suas indulgências, também, foram alvos de suas críticas por depreciar a cruz de Cristo. As crendices em relíquias religiosas eram rejeitadas, da mesma forma, pelo teólogo alemão.

Penso em como isso afeta a nossa teologia, hoje. É muito comum ver a ênfase moderna evangélica cada vez mais no homem e menos em Deus. Tem-se enfatizado muito certos mediadores e seus poderes. São os apóstolos, bispos e missionários, cuja oração e interpretação da Bíblia possuem um poder superior às dos outros. Se você colocar a mão sobre seu problema físico, enquanto o missionário orar, ele já não mais existirá. Se você, receber a água do rio Jordão (que, aliás, vem num copinho embalado) ou a rosa consagrada, então você prosperará. Tudo isso são maneiras humanas de se achegar a Deus, no lugar de buscar conhecê-lo por meio da revelação dEle nas Escrituras. Não basta a mensagem do evangelho, é preciso que se acrescente algo mais a ela.

O mercado religioso que temos visto, hoje, não é muito diferente do mercado religioso da época de Lutero, em que as indulgências da época eram condição para a salvação. Hoje, para Deus abençoá-lo, é necessário dar e dar, a fim de que Deus o recompense. Se você quer prosperidade, cura, sucesso nos relacionamentos afetivos, você precisa dar o trízimo (o dízimo de cada Pessoa da Trindade!), para barganhar com Deus os seus desejos. Isso não é teologia da glória? O homem tentando alcançar as bênçãos com o seu próprio dinheiro. Deus deixou de nos abençoar por pura graça, agora Ele abençoa porque precisa de uns trocados nossos para realizar o trabalho dEle.

2. A CONDIÇÃO DECAÍDA DO HOMEM
Ao entender que a salvação humana deveria ser alcançada pelo próprio indivíduo, em cooperação com Deus, a teologia católica medieval (que, diga-se de passagem, não difere em essência do que é hoje) tinha como ponto de partida uma visão otimista do homem, diferente daquela encontrada nos reformadores. Essa visão católica ficou conhecida como semi-pelagianismo ou sinergismo e desconsiderava o fato, desde o princípio exposto nas Escrituras, de que o homem é totalmente depravado e completamente incapaz de se achegar a Deus por si mesmo.

Foi contra essa alta estima da condição humana que os reformadores se levantaram. Lutero entendia, baseado em Romanos 1, que, devido ao pecado, o homem rejeita a adoração verdadeira a Deus em favor de ídolos. Foi de João Calvino a famosa frase que definia o coração humano como uma fábrica perpétua de ídolos. “O homem inteiro, em si mesmo, nada mais é do que concupiscência”[1].

Para João Calvino, o pensamento de que o homem era bom, excelente e capaz era expressão de um “cego amor próprio” perigoso. Devíamos começar com a perspectiva da nossa nobreza original e como ela foi perdida com a queda. Ao ver nossa condição anterior e nossa condição presente, entendemos a grandeza de nossa miséria e ansiamos pela dignidade de outrora. David Engelsma captou bem a perspectiva de João Calvino ao intitular seu artigo Apenas um asqueroso mau cheiro: a doutrina de Calvino acerca a condição espiritual do homem caído[2].

Agora, tudo isso não deve nos levar a uma conformação com esse estado de total depravação, “mas assim, tendo completo conhecimento de nossa miséria, podemos ser levados a Cristo, que é enviado para ser um médico aos doentes, um libertador aos cativos, um confortador aos aflitos, um defensor aos oprimidos (Is 61.1)”[3]. Cristo, então, passa a ser a única solução para o homem, tanto para a sua justificação quanto para uma vida corretamente direcionada na adoração do único Deus.

Precisamos resgatar as verdades do pecado original e depravação total que nos levam a depender exclusivamente de Cristo e enxergar as anomalias da alma humana como resultado de um coração pecador, não como um distúrbio psíquico ou meramente como fruto de causas orgânicas. Jay Adams e todos aqueles que deram continuidade ao seu trabalho vêm resgatando essa verdade da pecaminosidade humana, no aconselhamento bíblico. John MacArthur nos lembra da incompatibilidade entre a psicologia secular e a visão reformada e bíblica da pecaminosidade humana[4].

Creio, sinceramente, que resgatar a perspectiva correta da condição decaída do homem trazida pela reforma, é retornar a um aconselhamento que leva a sério o pecado. Nas comunicações de uma semana de estudos, de uma determinada faculdade teológica, ouvi um professor dizer que no processo de disciplina em sua igreja, com uma pessoa que estava sendo tratada por causa de roubo, ao invés de confrontarem o pecador em seus erros, o levaram para um tratamento psicológico, já que fora diagnosticada como cleptomaníaca.

Francamente, isto não é levar o pecado a sério como a Bíblia mostra nem como os reformadores entenderam. Esse tipo de teologia que se vende ao papismo da psicologia secular não é teologia reformada, muito menos bíblica. Urge resgatarmos tanto teoricamente, como de forma prática, o entendimento de que somos simul justus et peccator, que, ainda que considerados justos perante Deus e, regenerados pelo Espírito Santo, temos uma natureza pecaminosa que precisamos fazer morrer, diariamente (Rm 8.13; Cl 3.5). É esse entendimento reformado do homem, que os puritanos, mais à frente, desenvolveram de modo muito perspicaz, e que necessitamos resgatar como evangélicos protestantes, hoje.

Precisamos parar de rotular pessoas como “cleptomaníacas”, “bipolares”, “anorexas”, “portadores de transtornos obsessivo-compulsivos”, etc, levando-as à prostituta diabólica da razão psicológica[5] para resolverem seus problemas. Ao contrário, devemos confrontar o pecador com seu pecado e maldade, conduzindo-o à Cristo e Sua obra, como o único remédio para a sua restauração conforme a imagem do Criador (Ef 2.22-24; Cl 3.9-10). Cristo e as Escrituras sempre serão suficientes para transformar nossa condição miserável decaída.

CONCLUSÃO
Espero, neste estudo, ter promovido uma reflexão do princípio “reformado sempre reformando”, pois, necessitamos, continuamente, avaliar nossa teologia e práxis cristã, à luz das Escrituras e retornar aos pontos fundamentais de nossa fé.

A cruz de Cristo deve ser resgatada e suas implicações tanto no nosso entendimento da salvação, suas bênçãos e da vida de discipulado. Negando nos prostrar diante dos super-homens, e “aceitar a Cristo ... conhecê-lo como um dom e favor” que nos foi dado e nos pertence, de tal maneira que, quando o vemos ou o escutamos o que Ele faz ou sofre, não devemos duvidar de que Ele mesmo, Cristo, com tal obra e sofrimento seja nosso[6].

Por fim, nossa pecaminosidade nunca deve ser desprezada nem ignorada, porque, fazendo isso, desprezaríamos a Pessoa de Cristo e Sua obra em nosso favor. “... para receber as bênçãos de Deus nenhuns se admitem, senão os que do senso de sua pobreza se consomem”[7].

[1] Calvino, João apud George, Timothy. Teologia dos reformadores. p. 214.
[2] ENGELSMA, David. “Nothing but a Loathsome Stench”: Calvin’s Doctrine of the Spiritual Condition of Fallen Man. In: Protestant Reformed Theological Journal, April 2002.
[3] CALVINO, João Apud ENGELSMA, David. “Nothing but a Loathsome Stench”: Calvin’s Doctrine of the Spiritual Condition of Fallen Man. In: Protestant Reformed Theological Journal, April 2002.
[4] Ver MACK, Wayne, JÚNIOR, John MacArthur. Introdução ao Aconselhamento Bíblico. p. 26-27, 123-141.
[5] Encontro minha inspiração em Lutero quando uso este termo, especialmente quando ele abordava a questão da filosofia aristotélica.
[6] LUTERO, Martinho. Comentarios de Martín Lutero: Primera y Segunda de Pedro, Judas y Primera de Juan. p. 12.
[7] Calvino, João apud George, Timothy. Teologia dos reformadores. p. 215.

Nenhum comentário:

Marcadores